quinta-feira, 3 de novembro de 2011

- Então eles meio que me abandonaram a própria sorte. Na época meus pais postiços, a cozinheira – Maria e seu marido – Antonio, o motorista tiveram pena de mim. Eles já tinham uma certa idade, não tiveram filhos, minha mãe era estéril e como minha mãe biológica simplesmente ignorava minha existência ... nem peito eu peguei. M volta a respirar fundo, tentando se controlar. Fui criada pelos empregados, foi com eles que aprendi tudo na vida, a falar, a andar, a comer, tive o amor que não tive de meus pais biológicos, aprendi a ter respeito, a ser educada. Tudo que sou devo a eles. Meus pais biológicos parece que deram graças a Deus em não terem que se preocupar comigo. Davam um pouco mais de dinheiro aos meus pais postiços para ajudar nas despesas e nada mais. Fui criada na cozinha de minha própria casa. Muitos dos amigos de meus pais pensavam que eu realmente era filha da cozinheira e do motorista e não deles. Dez anos depois do meu nascimento minha mãe novamente ficou grávida. Então veio o tão sonhado filho homem. E aí é que realmente deixei de existir pra eles. Meus pais postiços continuaram a trabalhar na mansão. Eu estudei em colégio público pois meus pais não davam dinheiro suficiente para que estudasse em colégio particular, cresci assim, tendo tudo do bom e do melhor a minha volta, tudo que tinha por direito, mas não usufrui nada. Vivi como uma menina pobre, filha de empregados.
- Quando fiz 18 anos, meus pais postiços tiraram férias juntos, foi a muito custo mas conseguiram, queriam me levar para conhecer o litoral, íamos para o Rio de Janeiro, eu era louca pra conhecer o mar. Fizemos mil planos, eu era maior de idade então não teria problemas em viajar com eles. Quando finalmente chegou o dia da nossa viagem, meu pai pegou o carrinho dele, velhinho mas muito bem cuidado e colocou nossa bagagem. Eu estava eufórica com a viagem. Porém, no meio da estrada um pneu furou, meu pai perdeu a direção e ...
M perde o controle e começa a chorar descompensadamente. Puxo-a para junto de mim e a abraço forte, sinto tanta infelicidade por ela que tento no meu abraço passar um pouco da sua tristeza para mim. Para que não sofresse tanto. Ela enxuga o rosto. Se afasta dos meus braços e continua.
- Bom, pra resumir, meus pais morreram nesse acidente, eu fiquei muito mal, fui parar num hospital de uma cidade do interior não lembro o nome. Tia Mirtes e Tio Ferreira é que foram ao meu encontro. Tentaram falar com meus pais sobre o ocorrido mas meu pai disse que não tinha filha mulher. Que só tinha um único filho, homem. Desde então nunca mais falei com eles. Para eles eu morri e para mim eles de certa forma também. Sai do hospital e fui ao enterro dos meus pais postiços. Depois de lá fui a luta. Sozinha. Comecei a trabalhar, estudei a noite, me formei em Propaganda e Marketing e continuei a viver, sozinha. Sem ninguém, sem família. Bom é isso.
- Nossa! Não sei nem o que te dizer M. Só posso falar que te admiro ainda mais. Você venceu garota! Venceu a vida e sozinha. Admiro ainda mais você por isso. Disse pegando em suas mãos.
M olha para o rio e fica pensativa por um tempo. depois de alguns minutos calada, se volta para mim. Seu rosto então volta a brilhar.
- Vamos dar um mergulho? Esquecer o passado? Diz sorrindo para mim.
- O último que chegar no rio é mulher de padre. Disse me levantando.
M riu e se levantou também. Corremos em direção ao rio. Chegando na beirada, tiramos nossa roupa M ria com gosto, nem parecia que a poucos minutos atrás ela estava tão abalada em se abrir comigo. Tiramos a roupa e caímos no rio, parecíamos duas crianças, brincando na água e dando “caldos” um no outro. Ficamos ali por um bom par de horas, a tarde longa e o sol nos aquecia. Depois de ficar ali no rio nos divertindo olho para o céu. Sinto uma mudança no vento.
- M é melhor nos recolhermos. O tempo tá mudando.
- Como mudando, Victor! Olha só! Céu limpo, bebeu muita água do rio foi? Brincou.
- Vai por mim, garota. O vento mudou, o tempo vai mudar, melhor irmos embora, antes que a chuva nos pegue pelo caminho. Vem! Puxei-a pelo braço saindo da água. Nos secamos e vestimos nossas roupas, M me ajudou a guardar tudo na charrete. Quando saímos de junto do rio e pegamos a estrada de chão vemos nuvens pesadas no final da estrada. Nuvens pretas e carregadas. Aponto para elas e digo.
- Viu! Olha a chuva vindo lá.
- Nossa! É mesmo, como você soube?
- O vento. Mudou de direção. Pelo visto você não aprendeu nada na pescaria né! Brinquei.
- Não fui eu que peguei um peixinho assim ó. Mexeu comigo.
- Ué! Você disse que foi você esqueceu! Ih! Acho que não fui eu que bebi muita água do rio não. Brinquei.
Ela riu com gosto. Olhou novamente para as nuvens de chuva e perguntou:
- Será que dá tempo de chegar em casa?
- Dá sim, não se preocupe, deve começar a chover por aqui lá pro fim do dia.


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